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Dançarinos no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Manter a individualidade é essencial para se sentir bem a dois

Tempo de leitura: 12 minutos

Por trás de toda boa dança há conexão e conforto, independente do gênero e do papel dos dançarinos

Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023

“Nossa! Na minha época não existia chance de uma menina dançar/conduzir. As pessoas começavam a ‘tirar sarro’”, comenta a professora de dança de salão Patrícia Lira.

No início da dança de salão, a condução era baseada na força, obrigando a pessoa conduzida executar o movimento a qualquer custo. Com o passar dos anos, os estudos sobre técnica e mecânica dos movimentos cresceram e desde então, muitos profissionais (porém nem todos) prezam por uma condução de movimentos mais confortável.

As nomenclaturas para se referir a cada uma das funções de uma dança também passaram por transformações. Antigamente, se utilizava os termos Dama e Cavalheiro ou Homem e Mulher, mas atualmente tem se tornado mais corriqueiro se referir aos papéis dos dançarinos sem associação ao gênero: Condutor/a e Conduzido/a, Leader e Follow, Líder e Seguidor, Fala e Escuta. Entretanto, a professora Adriana Gomes (SP) conta que há regiões no Brasil que ainda se referem como Dama e Cavalheiro, em contraponto ao fato que “hoje em dia você faz o papel de condutor e conduzido, não necessariamente sendo homem e mulher, e sim um ser humano”

Quando se fala em condução, existem opções para quando o casal dança junto e quando está separado:

  • Condução em que o casal dança junto
    • Diretiva: em que a pessoa conduz todos os movimentos da pessoa conduzida;
    • Indução: em que a pessoa induz a outra a fazer os movimentos.
  • Condução em que o casal dança separado
    • Wi-Fi: a condução acontece por meio da conexão visual, do posicionamento do corpo e dos “códigos” das movimentações. 

A movimentação de Wi-Fi é muito comum ao se dançar Lambada, mas também acontece no Zouk Brasileiro. Uma dança pode incluir todas essas possibilidades, e ainda, existe a condução Compartilhada. Esse tipo de condução se refere a uma troca de papéis, em que hora uma pessoa conduz, hora o outro dançarino conduz. Nesse caso, ambos executam as duas funções ao longo da dança. 

Papéis da dança a dois

A artista Melyssa Tamada, 22 (SP), lembra quando começou na dança de salão, aos 13 anos. Naquela época ouvia que a Dama era a pintura e o Cavalheiro o quadro, o que pode ser traduzido para: na dança, a mulher só precisava ser bonita. Para uma Dama, as exigências eram estéticas, ter um corpo “padrão”, usar salto e estar maquiada. Para esse papel, entretanto, não era exigido ou ensinado técnicas de dança, bastava seguir seu Cavalheiro, “porque Dama não precisa pensar”, diziam

Com o passar do tempo, as visões retrógradas da dança de salão mudaram gradativamente e ambos os papéis passaram a ter sua valorização.

“Dançar à dois é como se fosse uma forma de comunicação, uma linguagem. Então tem que ter 50% de cada lado”,

assinala a professora Ruana Vasques, 34 (CE). Dentro desta perspectiva, a também professora Tracy Nathalia, 34 (PE) acredita que ser Follow vai muito além do seguir, é sobre saber seu espaço – e quando não recebê-lo, procurar por ele –,  ocupando um lugar dentro daquela conversa, naquela dança. “Não é só seguir, né? Porque eu escuto a música de um jeito, vou dançar com você, você vai ter outra percepção. Ela [como pessoa conduzida] pode propor também, ela tem a contribuição dela e tem a musicalidade dela.”

O papel de Follow, na maioria das vezes, realizado por mulheres, costuma vir acompanhado de cobranças para acertar, de ansiedade para adivinhar os próximos passos, de medo de se entregar e de ser julgada, de vergonha de expressar a sensualidade por meio da dança, etc. Adriana recomenda que as pessoas respeitem seus limites, seu tamanho de movimento, seu corpo e como gosta de dançar. “É você querer estar disponível a se conectar com essa pessoa com quem você está dançando e, com o seu jeito, ir colocando também a sua dança. Vou aproveitar o fluxo e dentro desse fluxo, vou conseguir mostrar o que eu gosto de fazer”. 

Embora muito se fale que quem é Follow exerce o compromisso da escuta, quem faz o papel de Leader também precisa exercitar sua escuta, de sentir as respostas que o corpo da outra pessoa está passando. Em uma aula do Floripa Zouk 2023, a professora Camila Magalhães, 27 (RS) comentou que o estadunidense William Wegert costuma fazer um “raio-x” do corpo de quem está dançando para identificar quanto de informação a pessoa precisa para executar cada movimento. Como Líder, o professor de Zouk Brasileiro Matheus Correa, 26 (PR), explica que na condução é possível pensar no esforço, na velocidade e na direção que os movimentos exigem. Ao combinar esses três elementos, é possível compreender como cada pessoa dança. 

Muitos profissionais acreditam que a pessoa que conduz vive no futuro, enquanto a pessoa conduzida vive no presente. Quem conduz faz um pré-movimento que fará o conduzido sentir o movimento que será executado. A dança se constitui do pré-movimento, do movimento e da finalização tal qual uma frase, onde o sujeito vem antes do verbo, que vem antes do predicado. Cada resposta dá sentido ao movimento e vida ao próximo passo. Por estar sempre no futuro, há também as inseguranças para liderar: o dançarino se concentra apenas em agradar o/a parceiro/a; se preocupa em demasia com os passos, com a música ou para não bater em ninguém no salão; e tem medo de não estar sendo claro no que está propondo. 

O professor de dança a dois Cloves Mascarenhas, 31 (BA), crê que o papel do líder não se resume a fazer passos, envolve também fazer transições entre um movimento e outro ao mesmo tempo em que aplica sua interpretação no tempo correto da música. É um papel que demanda muito cuidado com a outra pessoa, em especial, para garantir conforto e segurança ao longo de toda a dança. 

Dançarinos no baile do Floripa Zouk 2023 | Crédito: Beatriz Rey

Funções sem gênero

Em bailes de dança de salão, ver duas mulheres dançando é muito mais frequente do que dois homens. Isso acontece, principalmente, porque as mulheres são maioria no meio dançante e também por ser mais comum uma mulher aprender a conduzir do que um homem fazer o papel de Follow. A professora de dança de salão Evellyn Vasconcelos, 29 (AL), lembra de uma vez em que estava dançando com uma mulher e dois homens separaram elas de um abraço por acharem que estavam dançando juntas por falta de homens e não porque queriam. 

Ver duas mulheres dançando costuma ser mais aceito e admirado – sobretudo pela sexualização masculina. Dois homens dançando tendem a ser mais julgados, em especial por ser minoria e estar “reduzindo” o número de casais na pista. Em ambos os casos, o fato de fazer uma função que difere do padrão heteronormativo tende a ser interpretado que o/a dançarino/a é lésbica ou gay. 

“Minha grande barreira foi fazer as pessoas entenderem que eu não quero dançar com outro homem porque eu sou gay, eu quero dançar com outro homem porque quero explorar esse lugar”,

garante o professor de danças sociais, Felipe Lira, 28 (SP). No Zouk Brasileiro executar qualquer papel, independente do gênero, vem sendo cada vez mais aceito. O enfermeiro Rodrigo Frazão, 34 (RJ), conta que fazia aulas avançadas de Zouk Brasileiro como condutor e na turma iniciante como conduzido para ensinar sua irmã e aprender mais rápido. Contudo, descobriu que sentia muito mais prazer em dançar sendo conduzido e, desde então, dança majoritariamente nessa função.

Dançarinas na aula do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Praticar os dois papéis

Praticar um papel diferente ao que está acostumado pode contribuir muito para o desenvolvimento do dançarino. Por essa razão, Camila compartilha que sua metodologia de ensino parte dessa ideia, em que pede para seus alunos fazerem a atividade no papel contrário ao que estão acostumados, para que depois consigam fazer melhor o movimento quando estão em sua posição predileta. Quando a professora de Zouk Brasileiro e Lambada, Mariana Villar, 22 (PE), começou a conduzir, não fazia os passos que sentia desconforto quando era conduzida. “Quando a gente se dispõe a aprender, a entender como funciona o corpo do outro ali, a dança meio que começam a se encaixar e tem mais consciência”, compartilha Mariana. 

Experimentar o outro lado ajuda a trazer mais sensibilidade e entendimento para a própria dança. Contribui para ganhar mais independência em sua própria função, ao mesmo tempo em que ajuda a ter empatia pelos desafios do outro, sendo complementar ao aprendizado. “São dois papéis diferentes, com uma dificuldade diferente. Quando você consegue compreender as duas especificidades, tem um aproveitamento muito melhor”, ressalta a professora Bruna Kazakevic, 35 (SP). 

A profissional Carol Correa lembra quando sugeriu para um de seus alunos ser conduzido, já que ele não entendia porque quem ele conduzia fazia o passo antes mesmo dele conduzir. Ser Follow o fez compreender o que estava acontecendo e passou a ter um melhor desenvolvimento em sua dança. Agora esse aluno dança como Conduzido em bailes para se aprimorar como Condutor, pois “é incrível, acho que acrescenta muito na dança dele”, comenta a professora. “Você vai se divertir mais no baile, né? Se não tiver ninguém para conduzir, tu vai lá e conduz. Se não tiver ninguém para seguir, tu vai lá e segue. A possibilidade de se divertir mais numa festa vai ser melhor”, contribui Ruana. 

Dançarinos no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Condução confortável

À medida que a visão de que a dança deve ser confortável ganha força, os alunos estão cada vez mais preocupados com a segurança para uma experiência mais prazerosa. Nesse sentido, muitos dançarinos preferem conduções suaves, porém há quem pense que isso torna mais difícil a compreensão dos movimentos e isso pode se tornar desconfortável. Uma dança em que não há abertura ou se segura as mãos o tempo inteiro também pode gerar incômodo. Quando a pessoa não sustenta seu próprio corpo e pesa ou se apoia demais no outro também pode ser desagradável. 

O professor de Zouk Brasileiro e de Lambada, Marck Silva, 25 (PE), acredita que uma condução agressiva é aquela mais braçal e o contrário seria uma movimentação feita pelo corpo. Quando uma dança é desconfortável, os dançarinos precisam usar algumas técnicas para se proteger, por isso é importante saber dançar sozinho. Marck orienta seus alunos a sempre respeitar o próprio limite, “imagina a movimentação saindo do corpo e o braço sendo uma consequência e não uma ativação do movimento porque a gente vai usar mais o corpo, a gente vai se movimentar, dançando mais. A intenção não vai ser braçal e sim vai ser corporal”, explica. 

Fazer a preparação dos movimentos, ter sensibilidade durante a transferência de peso, respirar corretamente durante as movimentações e ter um bom abraço são algumas formas para garantir uma dança com conforto. Contudo, cuidar da outra pessoa respeitando seus próprios limites e do outro também são fundamentais. 

Luan e Adriana no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Nas aulas da dupla Luan e Adriana, eles associam um abraço para dançar Zouk Brasileiro a um abraço de saudade, aquele que carrega emoção ao mesmo tempo em que busca o máximo de pontos de contato. Mas, nem todos os dançarinos conseguem dar esse tipo de abraço em uma dança, pois pode haver dificuldade com o toque físico. Ao perceber o desconforto da outra pessoa, o dançarino deve tentar oferecer outra opção.

“Você tem que ter todo um cuidado com o outro e com você mesmo, porque a gente não sabe das realidades, né? Se você for colocar todo mundo na mesma caixa não vai funcionar o abraço, não vai ser um abraço gostoso. Então você tem que se adaptar a pessoa”, recomenda Carol.

Para ser confortável para ambos, cada um precisa estar na sua postura ideal e adaptar-se ao corpo do outro, de forma a manter a individualidade de cada um e ainda, se sentir bem a dois. Em bailes se nota que os pares ficam abraçados por muito tempo, isso acontece principalmente porque está tão confortável e gostosa a dança, que ninguém quer se afastar. 

Apontar erros e acertos na dança, e na arte como um todo, se torna difícil porque é algo subjetivo. Errar também faz parte da dança e isso não pode ser motivo de constrangimento. Quando algo sai diferente do previsto, novas possibilidades e caminhos são criados, fazendo a dança evoluir ainda mais. “Outro erro é se achar superior e achar que não tem que estudar mais. O Zouk é muito novo, então está em constante mudança e acho muito legal você acompanhar isso, vivenciar a cultura”, aponta Carol Correa. 

Outro inimigo dos dançarinos é a ansiedade, que se manifesta de diversas formas, no/a Follow em tentar adivinhar o que vai acontecer, no/a Leader ao não esperar seu par finalizar a movimentação, em se perder no tempo da música, etc. Em sala de aula, Lívia Veras e Matheus Correa costumam falar para os alunos que a dança está no entre, para que não se preocupem nem com o início e nem com o final, apenas com o meio, de forma que estejam sempre transitando de um movimento a outro sem pressa de acabar. Com o passar do tempo e com a experiência, as pessoas se tornam menos ansiosas dançando, algo que pode se refletir na vida pessoal do dançarino. 

Por meio da expressão de uma pessoa na dança, é possível conhecer mais de sua personalidade. É comum descobrir quando alguém é tímido ou mais expansivo pela sua forma de dançar, quando se abre ou se fecha para os movimentos, por exemplo. Ou ainda, deduzir que pessoas que dançam mais afastadas têm dificuldade de abraçar. Ao observar a pista e analisar os dançarinos, muitas percepções podem ser feitas.

Há profissionais como Luan Correa e Adriana Gomes que enxergam a dança como uma ferramenta para evoluir a inteligência emocional. Após anos dando aula, contam que começaram a perceber que a maioria das pessoas entrava na dança para esquecer ou consertar algo em sua vida. Quem possui, de fato, uma intenção de consertar algo na vida pessoal, pode começar a fazer isso na dança para que reverbere no cotidiano.

Na visão da professora Bruna, a dança ajuda muitas pessoas a curar bloqueios/traumas e age de forma terapêutica. Não achar que dança bem, se sentir inseguro, fazer autocobranças, ter medo de errar e se auto sabotar são alguns dos desafios. Seja por fatores externos ou da própria dança, os problemas reverberam e o corpo dá sinais de que algo está acontecendo. “O nosso corpo é a nossa via onde a gente conecta as nossas emoções, é onde a gente demonstra o que tá acontecendo. Nesse sentido, o corpo está se comunicando, então a minha maior dica seria escutar o seu próprio corpo antes de qualquer coisa”, orienta Bruna.

Conexão metafísica

Na dança, muito se fala sobre conexão consigo, com o par e com a música, mas para algumas pessoas há também uma conexão espiritual. Não, necessariamente, ligado à religião, mas sim a algo para além do material e do corpo físico. A professora de danças sociais Aline Cleto, 34 (SP), crê que a dança pode ser uma ferramenta para desbloquear energias em virtude das relações humanas e do contato, “acho que me conectei muito com a espiritualidade quando senti no corpo, quando percebi que tem muito mais coisas para além de mim e eu tava aberta para sentir isso”. 

A dança pode desencadear emoções, podendo provocar a vontade de chorar, a de entrar em um estado de profundo relaxamento ou a sensação de liberdade.

“Eu descobri que a dança para mim tá muito na minha missão dessa vida. Então quando danço eu realmente sinto que estou livre, que estou deixando a minha energia expandir, que estou alinhando todos os meus chakras”, conta Adriana.

Para muitas pessoas, a dança é um meio para se sentir mais feliz, “me sinto viva dançando, eu sinto Ele [Deus] através da dança e em muitos momentos de tristeza, senti a dança me levantando”, relata Tracy. 

Melhores danças

As melhores danças da vida não são sobre muitos passos ou sobre movimentos difíceis. Uma boa dança social precisa de conexão e não há conexão, sem a presença. A presença significa literalmente o estar presente, é sobre viver aquele exato momento, se perceber, sentir o parceiro e a música.

Aline explica que o toque e a respiração trazem a atenção para o momento presente, “quando alguém toca a gente, o que mais consegue ganhar é a atenção para as sensações que estão acontecendo ali na hora, naquele momento. Isso faz a gente perceber mais o nosso estado corporal”. Tanto para a dança em bailes como em competições, Marck costuma se concentrar na temperatura do corpo da outra pessoa para ajudar a estar presente. 

Em alguns casos, acontecem danças em que há profunda conexão entre os dançarinos mesmo sem se conhecerem ou terem dançado antes. Mas também há pessoas muito amigas ou que sempre dançam e nunca se conectam direito, ou ainda, aqueles que vão criando uma conexão com o passar do tempo. Essa conexão varia, e tudo pode influenciar: como a pessoa está se sentindo no dia, suas preocupações, o peso de querer acertar e de proporcionar uma boa dança para o outro. 

Ao longo da dança também pode acontecer situações de desencontros ou da perda da conexão. “Tem momentos em que você tá numa conexão muito boa com a pessoa e com a música e tudo acontece mesmo com os desafios do entorno. Mas tem momentos em que o desafio do entorno vai ser maior do que aquilo que você está vivendo”, afirma o professor de danças a dois Vinicius Mesquita (DF). 

Um momento marcante na trajetória de Camila foi perceber que sinalizar e reagir a um movimento era apenas um tipo de conexão, que existia uma conexão energética e existencial maior e mais profunda que a levou a estudar sobre esse estado de presença. Na aula “Descobrindo o caminho para Nárnia” de Camilla e William no Zouk Unity 2023 em Londrina (PR), os profissionais ensinaram a receita para a conexão: trazer a atenção para respiração, depois focar em algo que você está sentindo no toque do outro, em algo que você está vendo ou em algo que você está escutando na música.