Se expressar de forma sensual ao dançar por vezes é confundido com desejo sexual ou ainda como algo vulgar
Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023
Segundo a arte-educadora, Rubia Frutuoso 38 (SP), “tem uma bailarina que fala que ‘a sua expressão é única, se não for através de você, essa energia nunca vai circular no mundo’”. Assim, evidencia como essa expressividade é algo especial, ela ressalta que “não importa o quanto de habilidade você tem. É a sua história, que é diferente de qualquer outra pessoa nesse mundo”. A entrega de um/a dançarino/a no momento da dança envolve muitas questões internas e externas que foram superadas, trabalhadas e/ou elaboradas para expô-las como parte de sua história dentro de uma performance. No contexto do Zouk Brasileiro, muitas vezes, a entrega de uma pessoa à dança é vista com maus olhos por expressar certa sensualidade. E ainda, é mal interpretada como se aquilo fosse algo com conotação sexual. A proximidade dos corpos, os movimentos sinuosos, as ações de enfeite, os olhares, o rebolado, o jeito de se tocar e o cuidado entre as pessoas são algumas das características dessa dança. Esses elementos – sob olhares maldosos –, fortalecem a crença que se repete ao dizer que os dançarinos “parecem que estão ‘transando’ com roupa”.
No ambiente dançante, o toque é visto como algo natural e não romantizado, tampouco sexualizado. Mas quem não é praticante assíduo de dança, pode relacionar essas ações a um desejo sexual. Por esse motivo, pode ser difícil para pessoas externas ao Zouk Brasileiro compreenderem que, por mais conectada e próxima que ela seja, não significa que haja segundas intenções. A professora de dança de salão, Carol Correa 29, (RJ), comenta que mesmo entre dançarinos, é comum ver uma pessoa muito entregue dentro de uma dança e pessoas de fora concluírem e verbalizarem que “fulano/a quer ‘dar’ para a pessoa”.


Dançarinos no baile do Zouk Max 2023 | Crédito: Alan Cruz
Expressão corporal
Sensualidade
substantivo feminino, propriedade do que é sensual, relacionado aos sentidos; ou tendência aos prazeres dos sentidos; amor das coisas ou qualidades sensíveis.
Em uma definição de dicionário, a palavra sensualidade está associada aos sentidos e portanto, se configura como algo natural e único, relativo a cada ser humano. Pensando a sensualidade dentro da dança, mais especificamente ao Zouk Brasileiro, percebe-se que consiste em algo de dentro para fora, que se conecta aos prazeres que essa arte proporciona. Formada em inteligência emocional e profissional da dança de salão, Adriana Gomes, 27 (SP) acredita que sensualidade significa “seu jeito autêntico de ser”, sem fazer relação com o ato ou atração sexual. Por essa perspectiva, ser sensual na dança não se resume a um “carão” ou a enfeites, mas sim a tudo aquilo que o dançarino expressa, tudo o que essa pessoa sente. Pode ser dito como algo intransferível e único. Apesar de existir aulas de style (estilo), ser sensual na dança não é algo a ser ensinado, já que nessas aulas as pessoas aprendem a se entregar e colocar sua personalidade em cada movimento. Depois de um tempo, muitos dançarinos passam a enxergar a sensualidade de forma mais fluida e a sua entrega fica muito mais afinada com seu jeito de ser.
“Ser sensual também é sobre estar em uma posição vulnerável e se deixar expor. Por isso é importante não julgar a forma do outro se expressar”, acrescenta Mariana Villar, 22, (PE).
Superar o medo da exposição e ainda assim, se entregar aos sentimentos e externalizar o que sente pode ser desafiador. Há pessoas que possuem muita facilidade, que confiam e que “se jogam”, outros constroem a confiança ao longo do tempo e há aqueles que ainda não estão prontos para se expor. Mas, aos poucos, cada um se permite mais e deixa o corpo fluir. Independente do nível de confiança de um/a dançarino/a, respeitar o processo e a entrega do outro é crucial para melhorar a qualidade da dança.
Mariana sente que ser sensual na dança é algo sobre si mesma, sobre se sentir confortável e que simplesmente acontece. Mas a sensualidade é relativa, o que alguém considera sensual pode ser visto de outra maneira por outra pessoa. “A gente é uma sociedade, que negligencia o corpo e cria muitos tabus para a experiência corpórea. Então como a gente tem muitos tabus, acaba deturpando as experiências que podem ser saudáveis, que podem ser livres de expressão da sexualidade” aponta Rubia. Ela ainda fala que há uma visão distorcida, pois a sociedade“ sexualiza ao invés de compreender que faz parte da completude do ser humano, a livre expressão de sua sexualidade. Desde que ela não invada a livre expressão e o bem-estar de outra pessoa”.
Essa deturpação das experiências corpóreas está relacionada com a condenação do direito ao prazer, em que há julgamentos quando uma pessoa se sente bem ao dançar. Não raro, há pessoas que pensam o ato sexual como algo sujo e pecaminoso, em que tudo aquilo que remete ao sexo também é interpretado como algo ruim. Historicamente, as mulheres são sexualizadas e objetificadas e os homens têm medo de expressar sua sensualidade, a não ser de uma forma que garanta a sua masculinidade. A realidade da sociedade se reflete na dança, em que essas crenças também se propagam. Empreendedora artística e professora de Lambada Patrícia Lira, 50 (SP), lembra de toda a resistência do público para dançar Zouk Brasileiro por achar sensual e sexual demais, “Eu sempre falava: — ‘Você acha que se fosse uma coisa sexual eu ia dançar com meus filhos?’”.
Dançar usando a sensualidade como elemento de expressão, envolve enfrentar uma estrutura social preconceituosa, em que cada pessoa precisa aprender a lidar com questões internas e amadurecer. No início, quem dança e se permite expressar certa sensualidade, se sente perdido/a, fica com vergonha e não gosta da forma como executa os movimentos. Por medo de ser visto/a como alguém vulgar ou de chamar muita atenção, se compara com outras pessoas e se sente inferior. O autojulgamento coloca a cobrança pessoal em um nível altíssimo e atrasa o próprio desenvolvimento. Com o passar do tempo, o excesso de preocupações e inseguranças tende a diminuir e a confiança começa a ganhar espaço. Lidar com esses sentimentos amplia o processo de autoconhecimento de todo/a dançarino/a.
Para algumas pessoas, não há uma medida ou limite entre o que é sensual, sexual e vulgar. Logo, o julgamento do outro é inevitável, todos sempre serão julgados por alguma coisa. Por isso é fundamental não se diminuir e fazer o que faz se sentir bem. Tentar não julgar o outro também pode ajudar a tornar a cena da dança mais saudável. “Essa preocupação do que o outro tá sentindo enquanto tá vendo, acho que isso era uma coisa que a gente não devia se preocupar. A gente devia se preocupar muito com o que a gente está sentindo”, complementa Carol.
Muitas mulheres não gostam da temática “ser sensual na dança”, porque não se acham sensuais ou têm receio de serem mal interpretadas. Outras, sentem uma cobrança por não ser “sensual o suficiente”. “Quando entrei pro Zouk tinha uma cobrança muito de ‘— Ah, você precisa ser feminina, né?’ Como se eu não fosse feminina”, recorda Carol. Em outra perspectiva, Rubia, que iniciou sua história na dança pelo balé clássico, se sentia um “patinho feio” perto das mulheres que via na dança de salão. Ao perceber as diferenças na forma de se expressar dos dançarinos, a comparação se fazia muito presente. Por fim, concluiu que isso não fazia muito sentido, pois, afinal, ela tinha anos de experiência em dança e de fato seu corpo tinha uma constituição diferente – que não cabia comparações.
Ao manifestar seu jeito autêntico, o/a dançarino/a se liberta das amarras sociais e desata seus próprios nós. Expressar a sensualidade pode instigar olhares, a curiosidade e até mesmo o interesse pelo simples fato de transmitir coisas boas para outras pessoas. Quando existe aceitação e admiração própria, o dançarino não espera a aprovação de ninguém. Rubia defende a ideia de que “o corpo é seu veículo de comunicação com o mundo e que seu movimento deve ser sua livre expressão”.



Camila Magalhães e Julissa no baile do Zouk Unity 2023 | Crédito: Agnaldo Moita
Sensual não significa sexual
Sexualidade
substantivo feminino, conjunto de caracteres especiais, externos ou internos, determinados pelo sexo do indivíduo; qualidade sexual.
Exceto por alguns outros animais, nenhuma dança social tem como objetivo o ato sexual. As pessoas, em geral, dançam porque querem dançar. Contudo, às vezes um simples toque ou um deslize na pele é sentido como um índice que sexualiza a dança na mente de alguns indivíduos. Diante da realidade em que se confunde dançar com o ato sexual, muitos homens entram na dança para ter contato físico com as mulheres. Ao identificar essas segundas intenções, muitas dançarinas se sentem desconfortáveis e podem até deixar de praticar. Dentro da interação de uma dança, tudo depende de onde, do que, com quem, do como e do por quê é feito. Não dá para generalizar que toda dança implique em vontade sexual, apesar de que isso pode acontecer. “Eu acredito que você pode dançar com uma pessoa e não precisa ir para esse lado sexual”, aponta Patrícia.
Contudo, a dança também é um evento social e, muitas vezes, o principal meio de interações, especialmente entre os artistas. Logo, não se admira que dançarinos tenham relações amorosas e/ou sexuais entre si. Por mais que o sexo não deva ser o motivo para se dançar, o ser humano é sexuado e o desejo pode surgir durante uma dança. Existem inúmeras maneiras de sentir a dança no corpo, pelo tato, pelo olhar, pelo cheiro, pela audição ou de formas imateriais. Há abraços, há momentos em que se movimentam os quadris, há instantes em que o cabelo se projeta sobre o/a parceiro e cada ação pode produzir sensações e estímulos em diversas partes do corpo. Logo, aquilo que foi sentido de forma física pode despertar sentimentos, ainda que não haja desejo sexual por aquela pessoa. Tanto o sentimento provocado quanto o que foi sentido pelo outro pode acontecer, de forma intencional ou não.
Carol Correa costuma falar para seus alunos que é muito normal ter uma dança incrível e não sentir atração nenhuma pela outra pessoa, “você vai perceber que aquilo é só corpo e que não tem nada a ver com a sua parte sexual”. Uma de suas alunas não acreditava que era possível, até vivenciar isso em uma dança inesquecível. A professora lembra que quando a aluna terminou de dançar, mandou um áudio: “— Carol, você não sabe, agora eu entendi”.
Dentro de um abraço – em que a pessoa está envolvida ou que observa – não tem como identificar ou concluir todos os estímulos que aquela dança está gerando. No caso dos homens, pode ser complicado lidar com a excitação dele pela parceria, que pode inclusive culminar com uma ereção. Além do constrangimento pessoal, a outra pessoa pode perceber e/ou sentir o que está acontecendo. Rubia crê que não temos controle do que sentimos, mas sim do que fazemos quando sentimos. Logo, quando o homem percebe que algo ultrapassou o limite do que se considera respeitável, pode afastar o quadril, fazer movimentações mais distantes ou até mesmo parar a dança. Da mesma forma, a parceira, ao perceber algo errado pode se afastar e cessar a interação.
Em muitos casos, as pessoas usam a dança para demonstrar interesse na outra pessoa. Se ambos estão cientes da intenção e desejam o mesmo, é possível que algo aconteça fora daquele local, já que muitos acreditam que o baile não é o espaço mais apropriado para esse tipo de troca. A profissional do movimento, Kelly Palhares, 37, (MG), pensa a dança como uma ferramenta para conectar o ser humano com sua sexualidade, mas alerta para não utilizar essa forma de conexão como meio para buscar um prazer sexual momentâneo.
Durante uma dança em que há certa energia sexual, cada pessoa deve observar como se sente em relação a isso, se seus limites não estão sendo ultrapassados e se não está ultrapassando os limites da sua companhia. Muitas pessoas não querem e não permitem o toque em certas partes do corpo e isso deve ser sempre respeitado. Nesses casos, pode-se falar antes, perguntar antes, indicar, afastar ou proteger o corpo de alguma forma. Para além disso, deve-se verbalizar o desconforto ou encerrar a dança, por mais difícil ou deselegante que isso pareça. “A gente tem que ter muito cuidado ao tocar o corpo do outro. Quando a gente toca alguém, tem que saber que aquilo ali é um universo inteiro”, ressalta Kelly.