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Dançarinos no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Quebrando o ciclo: pelo fim do assédio na dança [ALERTA DE GATILHO]

Tempo de leitura: 7 minutos

Enquanto a marca patriarcal reforça a tradição do machismo dentro dos salões, lutas contra o assédio e importunação sexual ganham força

Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023

Este artigo foi construído a partir de entrevistas com profissionais do Zouk Brasileiro com o intuito de informar, conscientizar, estimular discussões e mostrar avanços no combate ao machismo e ao assédio dentro da dança de salão. Embora o assédio com homens também aconteça, a autora volta-se para as mulheres – vítimas da maioria dos casos. Mesmo assim, desejo que a leitura não desmotive sua prática e dê esperanças para tornar a cena da dança a dois cada vez mais segura e acolhedora. 

Apesar da liberdade e dos sentimentos bons que a dança proporciona, o ambiente dançante não está imune ao machismo e ao assédio. São problemas inerentes a praticamente todos os ambientes sociais e não gerados pela dança, mas sim pelas pessoas. O ecossistema dançante é reflexo da sociedade e acompanha suas mudanças, porém algumas heranças patriarcais continuam a reverberar. 

Em sua marca patriarcal, está o papel que uma pessoa ocupa na dança, em que normalmente o homem conduz e a mulher é conduzida. Há concepções em que nós mulheres devemos apenas seguir, não precisamos pensar ou ter a técnica para executar movimentos. Frases misóginas como “ser dama é fácil, é só sentir” e “a dama só tá ali pra deixar a dança bonita” ainda são ditas. Pelo desmerecimento do papel de pessoa conduzida, quando algo dá errado é comum colocar a culpa em nós mulheres. Professora de Zouk e Lambada, Melyssa Tamada, 22 (SP), lembra de um congresso em que o aluno pediu para testar um passo e reclamou: “Eu tava fazendo com as meninas e ninguém fazia isso, elas não entendem que é só fazer isso aqui”. Melyssa então explicou para ele e para a turma que cada pessoa tem o seu processo e que não se pode esperar um desempenho tal qual uma professora, ainda mais na primeira vez que alguém faz um movimento. 

“Façam o que te pedem. Quebre a coluna, mas faça o que te pedem.” É isso que esperam de nós, inclusive quando esse tipo de fala implica em uma lesão na pessoa. Em aulas de dança, o ensino costuma ser voltado para o papel de quem conduz mesmo que o número de pessoas conduzidas seja, quase sempre, muito maior. Assim, há mulheres que deixam de ir em congressos porque não faz sentido pagar para fazer aulas, se no final só temos que “relaxar, sentir e fazer”. Como se o ambiente de estudos da dança não nos pertencesse.

A desigualdade de oportunidades, de espaço e de reconhecimento entre os homens e as mulheres também são uma herança patriarcal. Ainda existe a figura do professor que explica tudo e da professora que faz par, sendo vista como assistente, reforçando uma ideia de submissão. Não raro, alunos e alunas tiram suas dúvidas com o professor, mesmo sobre situações inerentes ao papel realizado, predominantemente, por mulheres. Nessas horas, até as mulheres reproduzem atitudes machistas, ainda que inconscientemente. 

Quando acontece o término de uma parceria, o homem consegue se restabelecer no mercado mais rápido, trocando de parceira ou apenas dando aula sozinho. Ainda se perpetua a visão de que mulher só pode dar aula sozinha se for de style, porque se não estiver acompanhada a aula não é boa – ao contrário do que acontece com os homens.

“Tem mulheres ‘muito f****’ que não confiam que são “muito f****’, enquanto homens mais ou menos estão se achando muito bons”, defende a professora de dança, Andressa Siqueira, 26 (RJ). 

Além do machismo estrutural, há cobrança – pessoal e da sociedade –, por uma feminilidade padrão. Nós precisamos estar bonitas e magras, maquiadas, com os cabelos arrumados, bem vestidas e usarmos sapato de salto alto. Do nosso corpo, se espera leveza nas movimentações, flexibilidade, alongamento e tudo aquilo que aparenta ser “saudável”. No look, nossas saias não podem ser curtas nem longas demais, pois podemos passar uma mensagem “errada”. Enquanto um homem é aplaudido por sua performance masculina, as mulheres precisam ter uma série de cuidados e ainda assim não recebem o mesmo nível de valorização. Não é à toa que as mulheres até hoje têm salários mais baixos comparativamente. 

Antigamente, se um homem e uma mulher estivessem juntos em um baile, era preciso autorização dele para dançar com ela, pois a mulher seria “propriedade” dele. As vontades das mulheres são, em geral, silenciadas, pois é difícil para nós encerrarmos uma dança, mesmo que estejamos sendo machucadas ou ultrapassando nossos limites – fomos ensinadas a não reclamar ou a não dizer não. 

Machismo na parceria

Enfrentar o machismo estrutural é algo que nós mulheres já estamos acostumadas. Mas o que acontece dentro de uma parceria pode destruir a sanidade de qualquer uma. Exemplo disso é que, por muito tempo, manteve-se a regra em que o nome do homem deveria vir primeiro na apresentação da dupla. A dançarina e professora Carol Correa, 29 (RJ), conta que muitos eventos anunciavam sua dupla de forma errada, pois seu nome vinha primeiro, mas costumavam colocar o de seu antigo parceiro na frente. 

Mulheres são silenciadas por parceiros e pela comunidade. Frequentemente, os homens são anunciados, reconhecidos e agradecidos enquanto suas parceiras, esquecidas. Quando lembradas, a forma que nos identificam é a de “parceira de Fulano”. Se temos reconhecimento, a fama veio por “termos transado ou sido parceira de alguém”, e não por nosso talento, estudo e dedicação. 

Ao receber o cachê de um trabalho, há homens que ficam com o dinheiro para si, sem dividir com a parceira. Em negociações de contratação, a comunicação costuma ser feita com o homem. “Negociar um cachê é totalmente diferente quando você é uma mulher. Quando você é abordada por alguém, já se parte do pressuposto que é mais barata”, explica a professora que dá aula sozinha, Rubia Frutuoso, 38 (SP). 

Mulheres que dão aula sozinha enfrentam desafios para conseguir trabalhar. Segundo essas profissionais, um contratante já exigiu um “cavalheiro” para atuar no evento –  mesmo que ela desse aula para ambos os papéis. Outra vez, quando a organização de um evento soube que a professora não daria aula com seu antigo parceiro, retiraram-na da programação sem comunicá-la. Se fosse ao contrário, dificilmente o professor seria excluído do evento, mesmo sem parceira.

“Ser professor é uma relação de poder. Ainda mais quando mexe com arte, que é uma coisa que toca tanto a alma das pessoas. Então a gente precisa ser muito responsável e muito atento a essas relações de poder”, alerta Rubia. 

Assédio não é tradição, é crime!

Profissionais assediadores e até mesmo estupradores continuam sendo chamados para dar aulas em eventos e seus trabalhos seguem sendo reconhecidos. A comunidade da dança não sabe – e nem tem como saber –, de tudo o que acontece nos bastidores da profissão. Mas parte das professoras carrega traumas que algum homem já as fez passar. 

Há professores que se aproveitam de seu poder para chantagear alunas. Promessas de ajuda, viagens, convites para treinos, presentes e cortesias para eventos são alguns meios de troca usados em chantagens. A bailarina e coreógrafa, Alexandra Klen, 56 (SC), defende que

“a violência contra a mulher – seja ela psicológica, moral, física ou sexual, doméstica ou nos salões dos bailes ou ainda em grandes eventos de dança Brasil afora – tem que parar de ser vista como algo normal. Não é normal!”. 

Um caso que vivi, na final de uma competição de Jack and Jill (não oficial) em um congresso, um competidor – escolhido de forma aleatória –, empurrou minha testa com a sua mão para que realizasse uma movimentação de cambré. No término da dança, eu estava com os braços vermelhos pela força utilizada pelo competidor para que eu fizesse os movimentos que ele desejava. Quando a competição acabou, chorei muito, até tive uma crise alérgica – provavelmente emocional, já que nunca tive antes. Por isso sou tão a favor da condução confortável, para que outras pessoas não sejam forçadas a nada.

Por mais que a tendência seja diminuir o número de casos, nós mulheres não estamos ilesas. Vale ressaltar que a culpa nunca é da pessoa abusada, pois nenhuma roupa, movimento ou qualquer motivo justifica ou diminui a ação do agressor. Há homens que entram na dança de salão para ficar e abusar das mulheres, sendo que muitas delas não conseguem distinguir se é aquilo algo normal da dança ou não – principalmente, as iniciantes. 

Existe avanço

O processo de denúncia pode ser doloroso e libertador. Reviver o ocorrido, buscar provas e lidar com o agressor pode ressuscitar os traumas. Há o medo de denunciar, por haver pessoas que não acreditarão no que aconteceu ou que não queiram investigar os fatos. Além da justiça, a denúncia é também uma forma de tirar um pouco da dor que isso gerou e ajudar a evitar que aconteça com outras mulheres.

Aos poucos, a cena está rompendo o ciclo de abusos e quebrando as tradições, conforme os avanços da sociedade. Paloma Alves, 36 (SP), jornalista e professora de dança de salão, acredita que se esteja caminhando para um lugar de igualdade, em que os dois tem destaque e que um não precisa aparecer mais que o outro. “Hoje a gente entende que as duas partes precisam ter consciência corporal, se proteger, se cuidar no momento da dança. Quando a gente sai desses estereótipos, de que o Líder cuida e Follow segue já ajuda muito ter chegado nesse lugar. Mudou muito a perspectiva de quem faz o quê, a gente faz juntos”, expressa a profissional. 

Pessoas mudaram suas atitudes pelo medo da retaliação e passaram a tomar cuidado com suas falas. Há quem acredite que a dança exclui aqueles que cometem crimes, já que muitos foram retirados do ambiente. Em escolas, já houve professores afastados e alunos expulsos em virtude de acusações de assédio. O Instagram @chegadeassedionadanca também teve papel fundamental ao trazer essa pauta para a dança de salão, que por muito tempo omitiu fatos. As publicações também levaram alguns homens a refletirem sobre seus comportamentos.

“A gente tenta conscientizar não só aquele aluno, mas a sala em geral de que existe uma etiqueta na aula.”, comenta Melyssa sobre o trabalho que ela e outros profissionais vêm fazendo. Cada vez mais, aumenta o número de dançarinos que buscam criar uma rede de apoio para que a dança seja um ambiente cada vez mais seguro. Os avanços são grandes, mas ainda a muito a ser feito.