No momento, você está visualizando Lados do ofício
Dançarinos no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva

Lados do ofício

Tempo de leitura: 10 minutos

A realidade de ser profissional da dança de salão no Brasil

Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023

— Você não tem noção, né, do que você faz por essas pessoas aqui?!

— Não, eu ensino as pessoas a dançar. Não tô entendendo, onde você quer chegar?

— Olha, tem gente aqui que saiu de um relacionamento abusivo e tá tentando se reencontrar, tem gente aqui porque foi indicação do terapeuta, tem gente aqui que tá para melhorar a relação de casal, tem gente aqui que acabou de se mudar para Brasília e não consegue fazer amizade com ninguém e tá encontrando na dança uma forma de socialização. 

A resposta da aluna deixou a professora de dança Carol Dumay, 33 (DF), em estado de choque, porque, para ela, seu trabalho era apenas ensinar as pessoas a dançar. Quando contou sobre o diálogo para o parceiro e também marido, Vini Mesquita, 35 (DF), o silêncio pairou durante a viagem de carro até chegar em casa. “Depois disso a gente nunca mais voltou pra sala de aula com a mesma percepção de que está ali para ensinar as pessoas exclusivamente a dançar. Começou a ter um significado diferente, o ‘ser professor de dança’ começou a ter um significado diferente pra gente, passou a fazer mais sentido estar em sala de aula”, recorda Carol, que largou o escritório de Arquitetura para se dedicar apenas à dança de salão. 

Ser profissional de dança à dois vai muito além do conhecimento de técnica, musicalidade, passos, didática, metodologias de aprendizagem, processos coreográfico e de improviso. Significa também ter um amor tão grande e genuíno pela arte que transborda e transforma a vida dos alunos. Para além da diversão, trabalhar com dança requer disciplina, dedicação e estudos constantes. Demanda agilidade e adaptação para diferentes corpos, ambientes, estilos e músicas, assim como explora a criatividade, tanto para o palco quanto para o social. Os artistas abdicam de finais de semana e momentos em família para impactar outras pessoas por meio da sua arte, assim como levam o corpo ao extremo, dormem e se alimentam mal durante os eventos. Felipe Lira, 28 (SP) conta que está tão acostumado com toda correria da vida artística que “é assustador acordar e saber que eu não tenho que dar aula, que não tenho que fazer show é uma coisa assim muito estranha, meu sistema não sabe reconhecer isso, meu corpo não sabe estar em silêncio”. 

O mercado de trabalho dessa profissão exige que seja um artista completo: dê aula, seja coreógrafo, faça apresentações, saiba improvisar, interaja no meio social e seja, mais recentemente, influencer. Por questões de paixão e/ou de sobrevivência, precisam saber outras danças ou trabalhar em outras áreas. Muitos professores se lançam no mercado internacional em busca de mais oportunidades e de valorização financeira. Ou ainda, abrem uma escola, vendem cursos, se dedicam às aulas particulares, enfim, o que for possível para se sustentar. Contudo, o caminho até a estabilidade financeira passa por trabalhar de graça, investir na carreira, fazer muitas aulas, participar de formação para professores, se fazer visto, participar de competições, etc. Mesmo aqueles que possuem reconhecimento internacional e anos de carreira precisam continuar provando seu valor. 

Há quem pergunte se professores de dança trabalham ou se divertem. A resposta vai variar para cada artista, mas é possível fazer ambos, levar a ocupação com profissionalismo e se divertir. Uma das alegrias desta profissão é criar laços e conexões com pessoas do mundo inteiro, com outros profissionais, alunos e demais dançarinos. No final das contas, todos compartilham a mesma paixão pela arte.

“Eu costumo dizer que a dança e o ser professora é tudo que eu tenho e tudo que eu sou”, afirma a professora Milena Fernandes, 26 (AM). 

Dançarinos no baile do Zouk Unity 2023 | Crédito: Agnaldo Moita

Bruna Peçanha, 22 (RJ), fazia balé e acompanhava sua mãe nos ensaios da companhia, apenas observando, já que não gostava de Zouk Brasileiro. Um dia precisaram de alguém para substituir Irla Carina, 32 (MA), na coreografia e após muita insistência, Bruna cedeu e desde então nunca mais parou de dançar a dois – decidiu que isso seria sua vida também. Nem todo profissional tem suporte familiar, emocional ou financeiro, podendo tornar essa relação desgastante. Contudo, o apoio pode vir também através das conexões da dança, pois os profissionais viajam com frequência e, devido a convivência, criam laços fortes entre si, criando um outro tipo de “família”. “Nos encontramos dentro dessa carreira e dentro dessa rotina, ferramentas para manter esse senso de família, essa união, esse respeito que é dar suporte para o outro”, compartilha Felipe Lira. 

Rotina é algo que muda na vida de um professor de dança, pois cada dia e cada semana podem ser completamente diferentes. Porém, os estudos e treinos são itens fixos na agenda. Os cuidados com o corpo também fazem parte do cotidiano do profissional da dança, através de academia, de ginástica, prática de alongamentos ou outras atividades físicas. “É importante quando você tem uma carreira internacional entender que você é a sua principal ferramenta”, aponta a artista Paloma Alves, 36 (SP). Os profissionais se preocupam e cuidam para não se lesionar, já que isso implica ficar sem trabalho e, consequentemente, sem dinheiro. 

Quanto à imagem, como toda figura pública, o profissional deve pensar em qual imagem quer construir e observar suas faltas e excessos. Deve-se observar também que todo comportamento de um artista é observado, sobretudo na forma como se relaciona com as pessoas. Existem expectativas sobre professores/as, pois são vistos como ídolos e há quem sonhe em dançar com eles/as, motivo pelo qual se formam filas em bailes. O artista Marck Silva, 25 (PE), recorda quando dançou apenas abraçado por várias músicas com uma mulher, sem muitas movimentações. Em seguida, ela falou que se sentiu muito incapaz, já que ele não dançou como dançava em vídeos com Melyssa Tamada, sua parceira. Marck respondeu que o abraço estava tão incrível que não sentiu necessidade de fazer outra coisa e que a frustração se deu por expectativas dela. Nenhum profissional trabalha para suprir os desejos e fantasias de ninguém. “Às vezes as pessoas colocam a pressão em cima de mim, mas ao mesmo tempo, ela colocou uma pressão em cima dela por não se sentir capaz só porque eu não fiz o que eu faço com a Mel, sabe?”. 

Apesar das exigências externas, por um alto nível de profissionalismo, sem erros e dança “limpa|, as maiores cobranças vêm do próprio artista. O profissional passa pela síndrome do impostor, quando acha que não é bom ou que não tem conhecimento o suficiente, boicotando seu sucesso. Quando começam a dar aula, passam por muitos questionamentos, se a didática está boa ou se os alunos estão compreendendo. Afinal, nem sempre um bom dançarino/a é um bom professor/a. 

Paloma, quando iniciou sua trajetória pelas danças a dois, conta que às vezes, nem se comparava por acreditar que não existia motivo para comparação já que as outras pessoas estavam muito acima dela. Há também uma ideia de competição entre os profissionais por espaço no mercado de trabalho. Por mais que exista concorrência, a comunidade perde quando se incentiva esse tipo de competição.  

Existe ainda as comparações geográficas, em que profissionais comparam seu talento com os do Rio de Janeiro e os de São Paulo, achando que não são tão bons quanto eles. “Quando você viaja acaba entendendo que as pessoas que realmente tem um destaque, não necessariamente, são de um determinado local, mas são pessoas que estão sempre buscando conhecimento”, conclui o professor de dança de salão, Cloves Mascarenhas, 31 (BA).

Pandemia da Covid-19

Durante a pandemia da Covid-1, ninguém poderia prever que passaria meses sem trabalhar. O medo de ficar doente não foi a única coisa que assombrou os artistas, pois ficar sem a dança social significava a ausência dos momentos de diversão, além da luta para se manter financeiramente. Aos poucos, os profissionais tentaram se reinventar, migraram as aulas para o ambiente remoto, desenvolveram cursos online e produziram conteúdos diversos. A professora de dança de salão Tracy Nathalia, 34 (PE) lembra que os bailes virtuais e lives – que eram encerrados por conta dos direitos autorais –, tentavam imitar a realidade antes da pandemia, mas não era a mesma coisa.  Quem continuou trabalhando, sentiu o peso de promover diversão e leveza, em meio a um período tão triste. 

Pela saudade ou pela necessidade, houve também os eventos clandestinos, que dividiam a opinião entre apoiadores e contrários ao isolamento. Em meio a situação política conturbada, muitos profissionais tiveram sua imagem profissional afetada por compactuar ou não com a ilegalidade. 

Nem todos os profissionais conseguiram se manter estáveis financeiramente durante a pandemia, recorrendo a empréstimos bancários, pedidos de dinheiro à família e amigos e outros tipos de ajuda. Carol e Vini, por exemplo, tiveram alunos que continuaram pagando a mensalidade da academia, mesmo sem fazer as aulas, apenas para ajudá-los. 

Julissa e Diego Reis no baile do Zouk Unity 2023 | Crédito: Agnaldo Moita

Valor do artista

A inexistência de regulamentação e a precarização das relações de trabalho impactam no reconhecimento dos artistas. Aqueles que se dedicam às danças a dois investem tempo e dinheiro em aulas, congressos, cursos e viagens para garantir a sua formação. O valor investido se torna ainda maior para quem vive em regiões afastadas da região sudeste. Lívia Paixão, 33 (PA), perdeu uma oportunidade para dar aula em um congresso no Rio de Janeiro, porque não conseguiria arcar com os custos da viagem. No evento, ela e o ex-parceiro, Lorran D’Rodrigues, seriam os únicos a representar a região Norte, “não é fácil viver da dança”, afirma. 

No início da carreira, os profissionais costumam trabalhar de graça para ganhar visibilidade. Não raro, conciliam a vida de artista com alguma outra ocupação. Professores garantem sua renda por meio de aulas em escolas, aulas particulares e workshops em eventos. Contudo, há lugares e eventos que não pagam pelo trabalho. As apresentações de coreografia costumam trazer mais visibilidade do que retorno financeiro, mas há quem pague por elas. 

Ao ser contratado/a para um evento, em um plano ideal, o/a profissional não deveria ter nenhum custo para trabalhar e ainda receber por isso. Porém, na prática, depende do que foi acordado entre as partes, já que os custos para contratação de um profissional envolvem: cachê, transporte, hospedagem e alimentação. Em busca de mais oportunidades, profissionais projetam sua carreira de forma internacional e realizam turnês. Longe do pressuposto que são viagens de glamour, a realidade é bem diferente. Dormem na casa do contratante ou em um quarto com mais professores, não têm uma boa alimentação ou tempo para passear e passam muitas horas em transporte, em assentos desconfortáveis. Ao ingressar no meio artístico, é preciso ter consciência de que se trata de uma carreira sem muita projeção ou estabilidade financeira. “Viver da dança é escolher a dança”, garante o professor de danças de salão, Alex de Carvalho, 46 (RJ). 

Arte de ensinar

Dançar pode ser uma ferramenta terapêutica, então existem muitas responsabilidades envolvidas. É preciso ter clareza do porquê se almeja a vida de professor, sendo algo fundamental para trabalhar de forma mais consciente e para traçar objetivos a longo prazo.

“Sou professora e vou continuar sendo porque eu amo compartilhar. Dedico tanto da minha vida para algo que amo muito, eu amo muito dançar e amo continuar aprendendo”, justifica Paloma. 

O processo de preparação de uma aula de dança a dois envolve construir um plano, que sai do macro para o micro de forma que contribua para aumentar o conhecimento do aluno. O professor se esforça para encontrar as melhores maneiras de fazer e explicar o como, o quando e o porquê do conceito ou movimento.

Cada indivíduo tem diferentes formas de aprendizagem, por isso, é interessante explicar de uma maneira que garanta a compreensão de todos. Para as pessoas que aprendem de forma visual, mostram a movimentação; aos auditivos, fazem explicações técnicas e descritivas e para os cinestésicos, fazem a pessoa sentir o movimento fisicamente. Os profissionais desenvolvem também sua didática para se adaptar a diferentes idades, níveis e corpos de seus alunos. Quanto à estrutura, aulas de danças sociais costumam começar com alongamento e/ou aquecimento individual.

Depois que a proposta da aula é apresentada, os alunos reproduzem a movimentação ou o conceito, de forma separada ou conjunta. Inicialmente, aprendem a executar o passo e depois, praticam na música. Nem toda aula busca focar em passos ou sequências de movimentos, algumas podem explorar a criatividade dos alunos ou conhecimentos mais técnicos e teóricos.

Aulas em escolas, particulares e de congresso são bem diferentes entre si. É comum que os profissionais iniciem suas trajetórias empregados por escolas, mas sonham com o convite para trabalhar em congressos. Camila Magalhães, 27 (RS), conta que há uma clássica frase de que “congresso informa e a sala de aula forma”, ou seja, que toda a formação de estrutura e de repertório vem da construção das aulas em escolas de dança.

  • Aulas em escolas

Acontecem em grupo, normalmente em uma escola de dança, com duração média de uma hora. O aluno faz a aula de acordo com seu nível e conforme a disponibilidade, faz uma ou mais de uma aula na semana. Como acontecem em grupo, há mais interação social, os alunos ampliam suas amizades e tem a oportunidade de se adaptar e aprender com diferentes pessoas. Os professores se dividem entre todos os alunos e o andamento das aulas variam conforme o desenvolvimento da maioria. 

  • Aulas particulares

Costumam acontecer de forma individual ou em dupla, em que há dedicação exclusiva do profissional pelo tempo que foi acordado. Podem ser feitas em escolas de dança, na casa dos profissionais, em espaços livres, durante congressos ou onde for possível. Na aula, o aluno pode pedir por alguma movimentação específica ou o professor sugere o que precisa ser trabalhado. Como é um atendimento exclusivo, a pessoa tem atenção direcionada, de modo que consiga evoluir mais rápido. 

  • Aula de congresso

Nesse tipo de aula, um professor ou casal de professores dá aula para um grande número de pessoas, então precisam prender a atenção de muitos. Possuem temas pré-definidos e são para níveis variados. Costuma haver bastante troca entre os alunos e os profissionais ensinam alguma movimentação ou conceito específico. Sua maior vantagem se dá pela oportunidade de aprender com diferentes fontes, enriquecendo o conhecimento e ampliando a visão de um mesmo assunto. A diversidade de didática entre os profissionais ajuda muito o aluno a crescer por conseguir aplicar o que melhor funciona para seu corpo. 

Ser professor/a se trata de uma grande responsabilidade sob o corpo de outra pessoa. De forma geral, o que mais os deixa orgulhosos, além de suas conquistas profissionais, é acompanhar a evolução dos alunos e reconhecer que foram eles os responsáveis por esse desenvolvimento. Tracy conta que fica assistindo seus alunos e se sente muito orgulhosa ao vê-los conseguindo se entregar e fazer as movimentações. “Eu fico toda besta vendo eles se permitindo, experimentando outras coisas. É muito legal você ver como eles chegam na sua aula e como saem, é muito bom.”