Limiares entre parcerias de dança e de vida
Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023
Uma parceria de dança de salão pode ser comparada a um casamento. A dupla trabalha para construir a vida que almeja, estando junto nos piores e melhores momentos, servindo de amparo emocional para o outro e colaborando para alcançar seus objetivos. Convivem de maneira intensa, compartilham suas vulnerabilidades e seus segredos, viajam juntos e dividem os lucros. “É um casamento muito mais complexo, porque lida com dinheiro e com resultado. O casamento vai para o lugar do amor, na parceria a gente vai para o lado do resultado”, explica a professora de dança de salão, Carol Correa, 29 (RJ).
Em muitos casos, além de parceiros de dança, também são parceiros de vida. Assim como em quaisquer relacionamentos, os objetivos comuns a longo prazo servem como guia para começar ou terminar uma parceria. Quando o propósito muda, o relacionamento acaba.
Parcerias surgem de diversas formas, mas costumam partir de pessoas que gostam de dançar juntas, iniciando uma união de forma despretensiosa ou intencional. Depois de tornar oficial, os profissionais estudam e treinam para desenvolver sua dança e a própria metodologia de ensino. Às vezes, este se torna o primeiro desafio do casal, de tornar diferentes visões em uma só. Tracy Nathalia, 34 (PE), e Cloves Mascarenhas, 31 (BA), por exemplo, tiveram que juntar suas experiências dando aulas sozinhos em suas cidades para desenvolver uma única metodologia.
Para Tracy, uma das partes boas dessa relação profissional é compartilhar vitórias. “A gente sabe o quanto a gente luta, que passa dificuldades. Então quando a gente vai vendo as conquistas acontecendo é muito bom ter alguém que entende, que divide e que tá ali ao lado da gente, né?” Além de estar presente nos bons momentos, ter um parceiro/a de dança também significa dividir as incertezas e as frustrações da profissão, a instabilidade financeira e a saudade de casa. Melyssa Tamada, 22 (SP), lembra que desde a primeira viagem e a primeira turnê, ela e o parceiro Marck Silva, 25 (PE), serviam de suporte um para o outro.
“Você só tem um ao outro, sabe? Então o seu parceiro a sua parceira é o único. Às vezes é o único tipo de sentimento de casa que você tem, de aconchego”, compartilha Melyssa.
Mas, nem sempre é possível equilibrar todas as emoções e as dificuldades. Nesse tipo de relação, costuma acontecer uma mistura de papéis. Há momentos em que uma pessoa conversa com a outra como parceiro/a, mas o outro responde como amigo ou namorado. Logo, essa “mistura de papéis” pode desencadear em falhas na comunicação. Por esse motivo, exercer uma escuta ativa e agir com respeito se tornam tão fundamentais para o sucesso dessa relação profissional. Contudo, nem todas as parcerias são saudáveis, sejam também amorosas ou não. O artigo de opinião sobre machismo e assédio na dança, mostra como as relações podem ser bem problemáticas.



Lucas Pellini e Saulo Dias no baile do Zouk Unity 2023 | Crédito: Agnaldo Moita
Parcerias do mesmo sexo
Estar em uma parceria com duas pessoas do mesmo sexo implica em desafiar estereótipos de gênero. Além da visibilidade LGBTQIAPN+, um trabalho entre duas mulheres ou entre dois homens, trata-se de mostrar que a dança vai além dos papéis de gênero tradicionais. Demonstra que há igualdade de habilidade tanto ao liderar quanto no seguir, empoderando ambos os profissionais e inspirando outros dançarinos.
Por mais que esse tipo de parceria aumente a riqueza e a diversidade de possibilidades dessa forma de arte, conseguir trabalho não é fácil. Devido ao preconceito, precisam provar, constantemente, suas qualidades profissionais e artísticas. A professora de Zouk e Lambada, Martha Royer, 31 (RS), que já trabalhou com parceiros homens e mulheres, lembra de quando fechou parceria para um evento com um homem por estar treinando com ele, mas acha improvável que o convite viesse se sua parceria fosse com uma mulher. “Será que eu ia ser chamada para dar aula? Provavelmente não, infelizmente. Então isso bota o teu valor como profissional, né? Ah, então quer dizer que ele dança melhor só porque ele é homem?”.
Ainda que mulheres tenham mais experiência, tanto de dança como de sala de aula, as pessoas não dão o mesmo valor quando se trata de duas pessoas do mesmo sexo. É evidente que predominam casais de sexos diferentes nos congressos. A artista Camila Magalhães, 27 (RS), comenta sobre a disparidade entre trabalhar com William Wegert, 24 (EUA), – homem, estadunidense, branco, hétero, cisgênero, de olhos e cabelos claros –, e com Kamylla Chagas, 25 (RS) – mulher, brasileira, preta, lésbica, cisgênero, de olhos e cabelos escuros –, pois foi “aí eu tive a visão do contraste, foi aí que percebi o quanto eu sozinha era preterida e o quanto eu com a Kamylla era mais ainda”.
O professor Diego Basílio, 23 (SP), aponta que ainda há muita discriminação, em que preconceituosos manifestam sua aversão em comentários de vídeos. Apesar das expressões de ódio, ele e o parceiro Kevin Oliveira, 27 (SP) se sentem abraçados pela maioria das pessoas, pelo incentivo que recebem. “A gente só quer mostrar um bom trabalho e quando a gente faz um bom trabalho, com muito amor, com muito carinho, as pessoas meio que são obrigadas a abraçar porque elas sentem até intimidadas de achar aquilo estranho”.
A existência de parcerias do mesmo sexo na dança de salão reflete os avanços da sociedade. Romper com a ideia de que dançar a dois se restringe a duplas heterossexuais, abre portas para que a comunidade receba cada vez mais pessoas. Artistas em parcerias não heteronormativas seguem lutando para conquistar seu espaço dentro da cena de Zouk Brasileiro, pois seu trabalho reforça que a dança é para todos, que os dançarinos podem sim ser acolhidos e aceitos pela forma que são e por como se expressam.


Dançarinos no baile do Zouk Lovers 2023 | Crédito: Léo Silva
Parceria de dança e de vida
Independente se há um relacionamento ou não, é raro uma dupla de profissionais que não tenha ouvido a pergunta: “– Vocês namoram?”. O questionamento se dá porque as pessoas notam todo o carinho e conexão do casal. Em muitos casos, são, de fato, namorados ou casados, pois não é incomum que dançarinos, e principalmente os artistas, tenham relações amorosas entre si. Para a professora Aline Cleto, 34 (SP), quando um dançarino/a conhece os próprios limites e se sente bem e seguro/a dentro da dança, a atração sexual pode aparecer. Logo, ninguém está imune de sentir desejo sexual quando dança com uma determinada pessoa.
Assim como em qualquer outro lugar, se envolver com pessoas do mesmo meio social possui vantagens e desvantagens. “Tentei escapar muito de me relacionar com pessoas da dança quando entrei, porque achava que não tinha maturidade suficiente caso o relacionamento desse errado e ter que encontrar aquela pessoa toda semana”, compartilha a professora Carol Dumay, 33 (DF). Depois de muito fugir, começou a namorar Vini Mesquita, 35 (DF), com quem hoje tem uma parceria e um relacionamento de mais de dez anos.
Estar em um relacionamento ao mesmo tempo de uma parceria significa ter uma conexão além da pista. Ao trabalhar em equipe, a relação costuma ser baseada na comunicação, inclusive a não verbal, em que um simples movimento, toque ou olhar pode dizer muito. Envolve sentir e perceber o corpo do outro, compreendendo que nem sempre ambos vão estar bem e que o cuidado precisa ser mútuo.
Os casais vivem na dança divertidas e emocionantes aventuras ao viajar, competir e se apresentar. A artista Laura Dalava, 23 (SP), queria construir algo com alguém, mas achava que seria difícil encontrar uma relação de parceria de dança e de namoro, ainda mais se a pessoa não fosse do meio artístico.
“Nosso relacionamento foi a melhor coisa que aconteceu, a gente tem alinhado tanto o namoro quanto a profissão. Somos amigas no trabalho, amigas no relacionamento, então tudo tem aquele balanço. A gente está sempre presente uma para a outra, está sempre tendo uma conexão em todas as áreas da nossa vida, sabe?”,
compartilha Laura sobre seu relacionamento com Rachel Ramalho, 34 (RJ). Ela ainda comenta que conseguem construir uma vida juntas ao mesmo tempo em que não deixam de ter uma vida trabalhando e viajando para muitos lugares.


DJ Ju Sanper e Andreia Cardoso no baile do Zouk Hour 2023 | Crédito: Agnaldo Moita
Ao passar muito tempo trabalhando juntos, às vezes, os parceiros podem não dedicar um tempo para o namoro. Por mais que estejam no mesmo lugar, não significa que estão tendo um momento como casal, com tempo de qualidade. “Às vezes o artista vive tanto da arte dele que esquece que é um ser humano antes de ser artista”, atesta Milena Fernandes, 26 (AM), professora de dança. Quando um casal de parceiros está trabalhando, dificilmente desfruta da companhia um do outro de fato.
Como as danças sociais proporcionam contato mais próximo entre as pessoas, é comum que alguém que namora se sinta inseguro ou com ciúmes ao ver outro/a trocando energia com seu cônjuge. “No momento que você vai se relacionar com uma pessoa da dança é muito importante você entender como essa pessoa se relaciona com a dança dela”, recomenda a professora de Zouk Brasileiro, Paloma Alves, 36 (SP). Para proporcionar segurança dentro de um relacionamento monogâmico, verbalizar como a pessoa gosta de se expressar na dança e dialogar sobre o que tem dificuldade de lidar ao ver o namorado/a dançando com outra pessoa, pode ajudar a evitar problemas futuros. Quando os limites e as necessidades de cada um estão claros dentro de um relacionamento, nada precisa ser escondido.
Quando se trata de um relacionamento em que uma das pessoas não é da dança, quem não dança pode estranhar ou ficar enciumado/a com tanta proximidade com outra pessoa. Ou ainda, pode ter dificuldade de entender que o profissional precisa estar em um baile e dançar, ainda que não esteja trabalhando oficialmente. Estar nesse tipo de relacionamento significa também disputar o tempo de finais de semana e feriados com os congressos. “A pessoa tem que ter muita paciência porque você vai estar sempre em horários contrários, então é praticamente impossível você ter um fim de semana maneiro para fazer alguma coisa [com o namorado/a]”, pondera Carol Correa.
O fato da pessoa não dançar, exige muita compreensão e respeito pela profissão ou pelo hobby alheio. Para fugir de desentendimentos, muitos saem da dança ou terminam o relacionamento. Há ainda aqueles que preferem ter um relacionamento aberto. No caso de dançarinos não profissionais, muitos preferem se relacionar com quem já é do meio para evitar problemas, pois é preciso maturidade. Por essa razão, Vini Mesquita recomenda estudar Comunicação Não Violenta para que o dançarino consiga falar como se sente e também ouvir a outra pessoa de forma a garantir um diálogo saudável.
Entretanto, nenhum relacionamento monogâmico, está imune à traição. No contexto da dança, alguns preferem trair, mas a causa são as pessoas, não a dança!
“Acho que primeiro a dança precisa ser respeitada enquanto dança. A partir desse primeiro respeito, começar a respeitar a forma como eu me relaciono com as outras pessoas e eu me relaciono com o meio”, defende Paloma Alves.
Terminar uma relação pode ser difícil, já que há chances de continuar encontrando o antigo parceiro. Observar como se sente dentro do relacionamento e priorizar o próprio bem-estar deve vir em primeiro lugar. É preciso também se manter alerta aos sinais de abuso, de tortura psicológica, assédio verbal ou de qualquer coisa que gere desconforto. Se precisar de ajuda, converse com algum amigo, busque ajuda psicológica e/ou acione os órgãos mais indicados.
