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Apresentação de Adriana Gomes e Luan Correia no Sampa Zouk 2023 | Crédito: Baila Mundo

Coreografar é construir narrativas

Tempo de leitura: 7 minutos

Apresentações de dança emocionam e transformam as vidas de quem assiste e de quem executa

Escrito por: Mileni Francisco | novembro de 2023

Ao contrário do improviso, uma apresentação de dança tem cada segundo da música bem calculado e cada movimento tem um porquê. Cada profissional possui o seu processo coreográfico, mas há alguns pontos em comum para a construção de uma apresentação. Antes de iniciar a parte criativa, é preciso saber onde será a apresentação, quem é o público e qual é o objetivo. A dança pode fazer parte de eventos, espetáculos, congressos, shows, casamentos, etc. – podendo acontecer na rua, em um shopping ou em um teatro – voltado para crianças, jovens, adultos, de maioria feminina ou para uma categoria de profissionais. Em suma, pode estar presente em qualquer ocasião, lugar e público. 

A partir dessa definição, a seleção da música é o próximo passo. A escolha musical precisa ser coerente com o tipo de apresentação, mas, em geral, busca-se por composições com marcações acentuadas. A música pode provocar inspirações ou se encaixar com alguma ideia específica. Decidida a canção, os coreógrafos passam a trabalhar nos movimentos, que em geral constroem uma narrativa. A profissional de dança, Eliza Moritz, 42 (SC), costuma criar uma história em cima de uma música ou incorporar alguma vivência que teve na/com a música, deixando as movimentações como etapa final dessa construção. 

De forma diferente, Bruna Peçanha e Felipe Lira desenvolveram uma coreografia com a música Penhasco, de Luísa Sonza, que foi pensada enquanto Bruna ouvia a música no carro. “Comecei a pensar numa história, porque como é uma música muito emocionante, não poderia ser uma coreografia só de passo. Teria que ter uma história por trás.” Além disso, toda coreografia precisa de altos e baixos, pois manter o mesmo tipo de movimentação ou fazer passos e manobras difíceis o tempo todo não causa tanto impacto. A narrativa criada por Bruna e Felipe contém um elemento surpresa, em que, no final, a dançarina executa uma série de giros enquanto está vendada.

Apresentação de Mariana Villar e Ítalo Barbalho no Zouk Hour 2023 | Crédito: Agnaldo Moita

Coreografias temáticas podem demandar pesquisas e estudos de referências para traduzir aquela história em dança. Diego Basílio, 23 (SP), explica que seu processo coreográfico junto com Kevin Oliveira, 27 (SP), envolve escolher três elementos que realçam o melhor da dança deles, como movimentos acrobáticos ou giros, por exemplo. Depois, estudam a música para identificar os melhores momentos para tais elementos e também para passos de efeito, pegadas aéreas, enfeites ou acelerar/desacelerar a movimentação. Tanto o começo quanto o fim de uma coreografia também precisa ser marcante, explica Basílio. No início, para causar uma primeira boa impressão, despertar a curiosidade e fazer movimentos característicos daquele ritmo a fim de identificá-lo. No final, porque precisa ser memorável, já que é o que o público vai se lembrar. 

Outra etapa importante de uma coreografia é a escolha do figurino, que precisa estar de acordo com a proposta. Grande parte dos trajes são personalizados, com detalhes, bordados e pedrarias, então envolvem designers e profissionais da costura para sua criação. Em competições pode haver alguma regra ou orientação relacionada aos sapatos, pois, na maioria das vezes, costumam proibir que os dançarinos se apresentem descalços e, muitas vezes, exigem o uso de salto para mulheres. Em outros ambientes, podem se apresentar descalços, de meia, de tênis ou de sapato, tudo depende da ideia e do evento. 

Quando todos os elementos – ou a maior parte deles –, estão definidos, inicia-se os ensaios. No caso de coreografias para profissionais, a prática costuma acontecer de forma mais rápida e constante. Em apresentações de alunos, é necessário conhecer o nível dos dançarinos e entender que cada pessoa aprende as movimentações no seu tempo. Precisa ser algo que os alunos consigam executar e, simultaneamente, deve ser desafiador. Outra questão, é o tempo hábil para os ensaios, desde a periodicidade até a quantidade de horas de ensaio por encontro. Idealizar uma coreografia pode levar horas, dias, semanas ou meses, mas o sucesso da coreografia depende do trabalho em conjunto. 

Apresentação de Carol Justino e Diego Reis no Zouk Hour 2023 | Crédito: Agnaldo Moita

Uma apresentação pode ser realizada em dupla até uma centena de pessoas. Por essa razão, coreógrafos tendem a colocar movimentos mais avançados ou posições de destaque para os melhores dançarinos. Nos treinos são trabalhados os passos, os enfeites, as entradas e as saídas de palco e os desenhos cênicos, de forma a prever mudanças que podem ocorrer – como a ausência de uma pessoa. À medida que os ensaios avançam, começa o processo de limpeza dos movimentos coreográficos, para que fiquem mais sincronizados e de acordo com o tempo da música. 

Uma coreografia exige dos dançarinos muita disciplina e dedicação. Assim, todos os ensaios são importantes para sua construção. Por isso, é preciso ter paciência e entender que nem sempre o dançarino vai estar bem ou vai conseguir “pegar” rápido uma movimentação – quanto mais praticar, melhor. A professora e coreógrafa Andressa Lobato, 30 (SC), acredita que tudo o que acontece nos treinos se reflete no palco. Por isso sempre orienta seus alunos a treinarem como se estivessem no palco, pois crê que “tem que tentar dar sempre o 100% no ensaio para poder dar 70% na hora”. Pois no palco, parece que o tempo passa em uma velocidade diferente, as luzes iluminam o tablado e ofuscam a visão da plateia, a música preenche o ambiente e o público aguarda atento. Andressa explica que no palco muitos fatores influenciam, como o nervosismo. O medo de esquecer a coreografia faz parte, mas depois de muito ensaiar, na primeira batida da música, o corpo já reproduz os movimentos sozinhos. 

A disciplina é essencial para o resultado de uma coreografia. Significa, por vezes, abrir mão de outras atividades e também, cuidar da alimentação e do corpo. Em companhias de dança, pode haver muita pressão e exigências, que deixam o processo desgastante. O objetivo é propiciar um bom desempenho no palco, sem exageros. Entretanto, por mais que a presença seja exigida, as ausências nos ensaios são um desafio constante que os coreógrafos enfrentam. A falta de interesse e dedicação de alguns pode ser bem cansativo e estressante. Mesmo com meses de prática, parece que o tempo nunca é suficiente. Lidar com as expectativas dos dançarinos também pode ser um contratempo, porque ninguém nunca vai ficar totalmente satisfeito, ainda mais quando há posições de destaque. É fundamental estimular e mostrar a importância de todos os dançarinos dentro do conjunto, independente do nível de cada um. 

Coreografar também demanda preparo psicológico. Muitos profissionais acreditam que se “o frio na barriga” acabar, a profissão deixa de fazer sentido. Mas tudo depende da forma que cada dançarino vai lidar com isso. O segredo dos artistas está em não deixar o nervosismo controlar a situação e utilizá-lo a seu favor durante o show. Ao descarregar toda a adrenalina no palco, o resultado final fica ainda mais intenso e impactante. 

Embora o valor de uma coreografia não seja percebido, os custos envolvidos são muitos – para além do tempo investido na sua criação e execução. Se levar em consideração os gastos com o lugar do ensaio, o figurino, o designer de moda, a costureira, a maquiagem, o deslocamento e a alimentação no dia da apresentação, o fotógrafo, a filmagem e edição de vídeo, e outros, há muito dinheiro envolvido. No caso de competições, pode haver taxa de inscrição. Em apresentações em grupo, os alunos podem pagar pela coreografia montada ou pela hora/aula dos professores – cobrindo os custos, com até a possibilidade de lucro. Há também a possibilidade de receber por meio de editais de cultura. Entretanto, nem sempre os coreógrafos recebem por seu trabalho intelectual. Construir uma carreira e apresentar suas coreografias pode dar visibilidade, aumentar a rede de contatos e oportunizar possibilidades de lucro, apesar do trabalho envolvido. 

O dançarino precisa aprender de forma constante, evoluir sua dança e sua musicalidade, e ainda, melhorar o repertório da dança social. Andressa acredita que estar no palco é uma oportunidade incrível para mostrar o privilégio que é dançar. “A gente trabalha com a arte e nunca, em momento algum, a arte vai ser alguma coisa ruim, sabe? Então a gente tá ali para dançar para outras pessoas olharem e se inspirarem.” Se trata de uma vitrine para o trabalho do artista, que amplia sua visibilidade ao mesmo tempo em que inspira mais pessoas a entrar na dança.

Cada passo de uma coreografia conta uma história dentro daquele contexto e, quando a última nota chega ao fim, os aplausos indicam que o público se sentiu tocado por aquele momento. A artista Lívia Veras, 32 (SC), acredita que se trata de um momento de vulnerabilidade e de gratificação, pois à medida que o dançarino consegue ver, ouvir e sentir o reconhecimento do público, é como se tudo aquilo que viveu, estudou e ensaiou para apresentar fosse recompensado.

“Estar no palco é um momento muito especial. Não é todo mundo que consegue viver um momento em que as pessoas, literalmente, te aplaudem, sabe? É uma experiência muito única e muito legal, você é o foco, você tá ali sendo iluminado pelas luzes do palco”,

pontua. Apresentar uma coreografia vai além de uma performance de dança, se trata de uma jornada emocional, de conexão, de coragem e de transformação – para o público e para quem apresenta.